28 de dezembro de 2008

Maria Maria




O meu nome é Maria
se tenho outro de pia
pouco diz a meu respeito
que não passo de guria


Nada tenho com a Santa
coisa que eu até queria
Sou apenas mulher-moça
como é qualquer maria
olhos vivos serenados
coração com avaria
peito cheio de amores
mão que agarra alegria
jeito mesmo de outras moças
igual em tudo na vida
muitos sonhos e temores
muita história dolorida.

Como a vida pede passagem
pra quem vai e pra quem fica
não lamento mais que luto
aprendo e mudo a cada dia
Sou uma, mas sou muitas
sem deixar de ser Maria.

E convido a me acompanhar
Nessa estrada que me guia
Terra seca e batida
Em que ando noite e dia
E para que melhor conheçam
E me façam o gracejo
De acompanhar a vida minha
passo a ser Maria Maria
que em vossa presença caminha.


*Homenagem a João Cabral de Melo Neto, eterna inspiração.



Diândria Daia, Outubro de 2008

17 de dezembro de 2008

Carta de desamor

Chega. Cansei de ser o homem afoito que cerca a virgem mocinha. Tantas vezes você me disse que é egoísta, que pensa primeiro em você, no seu trabalho, que não serve para amar... Todas as vezes fingi não entender o recado, fingi não entender que eu não sirvo para ser o seu amor. Mas essa noite um lampejo de lucidez - ou de loucura extrema, não sei distinguir - clareou meus pensamentos. Não quero mais correr e não alcançar. Isso não tem fim.

Lembrei-me que, quando criança, morei numa vila chamada Telebrasília, próxima à L2 sul, numa casa simples de quintal enorme. Havia um descampado atrás da minha casa e muitas casinhas de madeira na rua abaixo à esquerda, e eu vi o arco-íris. Ele brilhava mais que em outros dias e estava tão grande e tão perto que eu tinha certeza que poderia tocá-lo.

Havia uma chuva fina que logo foi cessando e eu saí de casa correndo, disposta a tocar a ponta do arco-íris. Ele parecia estar bem ali, detrás das casinhas descendo à esquerda. E eu corri. Ele ficou ainda mais perto, mas eu tinha me enganado, ele estava mais abaixo um pouco das casinhas. Contornei a rua e quando ceguei lá, ele continuava lindo e brilhante, mas estava na parte mais embaixo ainda, e eu corri mais e mais e mais.

Quando achei que estava bem perto, o arco-íris ficou mais claro, mudou de posição, dava para o lado do descampado. Meu primeiro ímpeto foi continuar correndo, mas me dei conta de quão distante estava da minha casa. Tive medo, vi que aquilo não teria fim, eu jamais poderia tocá-lo.

E você é assim; a ponta do meu arco-íris. Então basta! Agora eu serei a egoísta, eu é que vou me preocupar primeiro comigo, meu emprego, meus estudos, minhas coisas. Vou guardar meu coração. Nem mesmo seu jogo de cores pode me enganar mais uma vez, aprendi a ler seus sinais.

Explodam com todos os tesouros, fadas ou lendas além do arco-íris, porque prefiro o calor verdadeiro que o sol me causa e prefiro o céu de imenso azul e prefiro o frescor das chuvas. Mas não se espante comigo, aproveite o seu domingo para se recuperar e a sua segunda-feira para recomeçar. Pode ser que muitas coisas boas te esperem; eu, não mais.




Diândria Daia, Dezembro de 2008

7 de dezembro de 2008

O cachorro do vizinho

Há três anos moro na mesma rua, mas tenho pouco contato com os vizinhos e nenhum amigo por aqui. A gente inventa desculpas, diz que é falta de tempo ou os desencontros de horário, mas a verdade é que nem sempre queremos dar intimidade àqueles que, por força da localização, já vigiam nossos passos diários e sabem da nossa vida antes mesmo de contarmos.

Muitos dos meus vizinhos têm cachorros, a maioria cães de guarda. Além dos altos muros, portões, grades e cercas elétricas, algumas casas chegam a ter mais de um cachorro. Então, se desço a rua um pouco mais perto dos portões ou se faço algum barulho ou movimento brusco, é um coral canino enlouquecido que me acompanha portão a portão até eu chegar em casa.

Ainda que alguns vizinhos ignorem a minha existência ou mesmo finjam não me ver subindo ou descendo a rua todos os dias, seus cachorros sempre me cumprimentam. No início era somente hostilidade e eu os temia mesmo presos às suas correntes. Mas com o tempo, acho que eles já me reconhecem e, mesmo no latido mais bravo, já sinto certa familiaridade.

Mesmo que seja a terceira ou quarta vez que me vêem no dia, eles me recebem com o mesmo alvoroço de horas atrás. Alguns, eu já cumprimento pelo nome, embora não faça idéia de como o seu dono se chama. Outros, eu mesma invento apelido, como o Rouco, um Rottweiler preto e muito bravo que tinha um rosnado grosso e um latido rouco. Mas ele se mudou da rua há alguns meses.

Tem um certo cachorro que me provoca broncas e risadas. O leitor me desculpe a ignorância, mas não sei bem como o dono escreve o nome de seu amigo. Vou chamá-lo do mesmo jeito que eu ouço pelo portão: É o Piti, um cão de alarme – muitas casas também têm cães desse tipo.

O Piti sempre me dá um enorme susto quando passo distraída em frente ao seu portão. O pior é que a Safira, uma do tipo Pastor Alemão, mora bem em frente ao tal cãozinho, então, automaticamente eu vou caminhando do lado oposto da calçada dela, para frente do portão do Piti. E sempre distraída. Não dá outra... o portão é discreto e o Piti é pequeno e astuto, só late quando eu estou bem pertinho dele, que é pra me surpreender melhor. Tem dia que saio xingando, tem dia que saio sorrindo de mim mesma, por cair na mesma armadilha de novo. Acho que ele se diverte com isso, só pode. E é um latido fino, alto e estridente, que me faz dar um pulo gigante de susto, toda vez.

Só que nos últimos dias o Piti anda sumido. Há tempos não late, não me assusta. Primeiro estranhei o silêncio do portão, depois achei bom, mas agora... Será que ele se mudou, adoeceu ou só resolveu me deixar em paz? Puxa, não é que ando sentindo falta do cachorro do vizinho?


Diândria Daia, Dezembro de 2008

2 de dezembro de 2008

Aquarelas

Ele não quer ir para o céu. Não sei se não quer ir pro mesmo céu que eu vou ou se não acredita em céu nenhum. Ou se é um homem mal e quer ir a qualquer lugar. Eu quero ir para o céu. E hoje que o céu está especialmente bonito. Despiu-se do azul tradicional e enrubesceu pelos raios do sol poente. Nem as nuvens carrancudas de chuva puderam escapar da linda aquarela pintada pelos raios de sol. O céu está claro, mesmo com nuvens escuras tem traços brancos e cinzas pincelados de rosa e amarelo... e brilha... juro, dá vontade de ir pro céu, de morar lá pra sempre!
Disseram-me que lá não há medos nem sentimentos ruins. Eu tenho tantos medos e tantos sentimentos ruins, uma gama de cores fortes se embassam em meu peito. Ele disse que não quer ir para o céu, mas ele também tem medos. Não como os meus, de menina insegura, indefesa, vulnerável... É um homem, não um menino. Mas tem medo de descobrir, depois de tudo o que viveu, tudo o que lutou, tudo o que abriu mão, que fez escolhas erradas. Viveu bem, não se arrepende, o medo não é bem das escolhas erradas, mas de não ter tempo de refazer o que realmente importa. Se ele pudesse faria tudo de novo e mudaria muitas coisas. É um homem feito, forte, decidido, mas passional. É um bom homem. Eu queria tê-lo no céu junto comigo.

1 de dezembro de 2008

Brasília em chuvas

Por incrível que pareça, a quantidade de chuva nesses últimos meses não está acima do normal. E ao contrário do que se tem ouvido nas rodinhas de conversas, as chuvas também não chegaram atrasadas, não estão exageradas e... Não! Não há nenhum tipo de anomalia climática. Mas se tem um ponto em que todos têm razão, é que a cidade está um caos.

Ruas alagadas, não só nas satélites, mas no centro de Brasília, nas L2 sul e norte e nas vias de acesso ao Plano Piloto. Se normalmente a viagem de ônibus já é difícil, lotado, com as pessoas molhadas e as janelas fechadas por conta da chuva fica ainda mais insuportável. Trânsito lento, acidentes, atrasos, problemas sobre problemas.

É claro que a chuva colabora, mas antes de existir cidade já existia chuva e todos sabem que é preciso se preparar para essa época. O mesmo deveria ser feito pelas autoridades competentes. Há problemas em vários pontos das cidades, como bueiros entupidos, vias de acesso em obras e asfaltos em péssimo estado de conservação. Sem contar prédios mal conservados com goteiras e infiltrações. Ruim para o motorista e pior ainda para o pedestre.

O discurso que as tempestades vieram para compensar a falta de chuva dos meses anteriores, que o clima de Brasília está ficando doido – é o efeito estufa, o buraco na camada de ozônio, o aquecimento global – enfim, todas essas argumentações alarmistas apenas desviam o foco do problema, colocando a culpa no fim dos tempos que se aproxima, ao invés de enxergar as questões reais e cobrar soluções.

A maioria das pessoas coloca a culpa nas chuvas. “É água que não acaba mais!”, escuto sempre. Mas acaba sim. Cada mês tem uma média esperada de quantidade de chuvas. Ainda que tenham acontecido algumas variações para mais ou para menos do que o esperado, foi algo tão pequeno, se comparado ao todo, que não justifica a inquietação. O que de fato aconteceu foram algumas chuvas mais fortes em um momento, o que não indica nenhum tipo de problema no clima. A época de seca vai chegar e as pessoas vão passar a reclamar da baixa umidade.

Então hoje vou sair de casa resignada. Não vou me preocupar se vai ou não chover. Levo uma blusa, um guarda-chuva, e calço um sapato fechado. Contra o clima, dá pra me prevenir, mas e contra a falta de infra-estrutura da minha cidade, o que eu devo levar na bolsa?
Diândria Daia, Março de 2008

11 de novembro de 2008

Será?

Quero provar do teu olhar doce
Ser tua mesmo se não fosse
Fazer parte dos teus planos
Serão enganos, enganos?


Porque me apaixono sem te conhecer?
Será esse que eu amo o mesmo você?
Será que eu venero uma ilusão?
Alguém com tua cara, inventado pelo meu coração?


Mas teu mistério me instiga a te aprender
E tenho mania de te conhecer
Quero estar ao teu lado a todo momento
Quem sabe até ler o teu pensamento


Ou te ver, mesmo invisível
Voar nos teus braços
Sonhar com o impossível


E se é um engano essa paixão
Não sei se eu quero ou se abro mão
Preciso antes saber o sabor
Preciso, meu bem, provar do teu amor


Diândria Daia, novembro de 2008

27 de agosto de 2008

Gramado


No início de agosto fui à Gramado (RS) pela primeira vez, conhecer o Festival de Cinema que acontece por lá. Embarquei com um grupo de vinte pessoas da faculdade que se juntaram para um projeto em torno do festival.
Chegando em Gramado, eu era a típica turista. Queria tirar foto com tudo e com todos! E descobria coisas novas a cada esquina. Primeiro descobri qual a sensação de ser uma cebola. Eram camadas e camadas de blusas de frio. Não me esqueci de nada: cachecol, luva, toca, meia, casaco e várias blusas longas de algodão e de lã. Se o tempo esquentava ou se entrava num restaurante, lá ia eu tirar as minhas camadas. Depois, na hora de sair, era só vir um ventinho e lá ia eu, vestir as minhas camadas.
Descobri também novas paisagens e andei pelas belas ruas de Gramado, onde as residências, bancos e cafés se parecem mais com casinhas de bonecas. Vi as serras, as hortênsias e também os gramados. Sim, vi gramados em Gramado (muita gente me perguntou isso).
Matei saudade da neblina e das chuvas que há tempos não vejo por aqui em Brasília. Sei que o tempo delas por aqui vai chegar, mas aproveitei bastante enquanto eu estava lá. Soltava fumacinhas nas conversas e nas gargalhadas, corri pra chuva e depois corri da chuva.
Curti cada minuto da linda cidade que se descortinava à minha frente. Provei os vinhos, chocolates, fondue, queijos, capelleti, chimarrão. Eu não queria que nada passasse por mim sem que eu provasse. Fiz novos amigos por lá, alguns de perto que estavam longe, outros de longe que agora estão um pouco mais perto. E por fim descobri novas saudades por aqui. Juro que eu não sabia que ia sentir tanta falta assim. Só que voltei e ainda estou longe. A saudade continua. Deixa estar. Uma hora passa, ele volta ou a gente esquece.

Ah, sobre o festival? Maravilhoso!! Mas isso merece um outro texto, que logo logo coloco por aqui.

20 de julho de 2008

Popular como uma novela

Eu estava dentro do ônibus, indo para faculdade, quando entra uma senhora e senta-se à minha frente. Eu pensava tantas coisas que nem notei sua presença no início. Aspirantes a jornalistas, ainda hoje, têm dentro de si um desejo de mudar o mundo. Acredito que isso tenha movido Chateaubriand, Oswald de Andrade ou Carlos Lacerda. Mas talvez hoje não sejamos tão idealistas quanto os colegas do passado.

Estar na faculdade, para mim, é parte dessa necessidade de fazer algo diferente. Algo que vá além de nascer, crescer, trabalhar e morrer. Se eu disser “marcar a história” ou “mudar o mundo” me parece muito prepotente, utópico, mas é um pouco isso. Querer fazer bem para as pessoas e para sociedade.

Mas não era sobre isso que eu vinha pensando. Eu enumerava as várias coisas que tinha de fazer assim que chegasse à faculdade. Quando a senhora em minha frente atende ao celular e diz bem alto: “Saí mais cedo do trabalho para ver a novela. Não posso perder o último capítulo”. Ela disse isso em meio a um amontoado de frases que não notei, mas essa saltou aos meus ouvidos.

O foco dos meus pensamentos começou a girar em torno daquela frase e permeou o resto da minha viagem. Vejam, a mulher havia mudado sua rotina por conta de uma novela. Muitas pessoas assistem a novelas, tipo de programa que é fenômeno de audiência na televisão.

Passei a imaginar a rotina de trabalho daquela senhora. Talvez ela tivesse deixado algumas coisas para o dia seguinte, acumulou serviço, prejudicou alguém que dependia de seus préstimos. Talvez ela tenha adiantado o serviço, ou simplesmente saiu e ninguém daria conta de seu adiantamento.



De qualquer forma ela havia mudado sua rotina por um acontecimento que, portanto, devia ser importante. Então, eu encho minha boca de frases típicas de aspirantes a jornalista e digo que novela não é algo importante. Eu poderia julgar aquela senhora como fútil, ignorante ou manipulada pelas artimanhas da tv em busca de audiência. Mas não é isso que me importa agora.



Eu quero saber o que tem naquela novela – ou em outras – para mexer assim com os interesses das pessoas. Imagino que, no caso da mulher no ônibus, não foi algo que deva tê-la marcado para o resto da sua vida. Antes de acabar a próxima novela ela já não se lembrará dos conflitos do último capítulo que assistiu naquele dia.


Como aquela senhora, muitas pessoas dão mais atenção a novelas do que a outros assuntos do dia-a-dia. E calculo, em pensamento, quantas pessoas saem do trabalho mais cedo, por exemplo, para ajudar o filho com os trabalhos da escola.


Confesso que meu interesse não é científico. De posse dessa informação – se eu a tivesse – talvez eu não mudasse o mundo e nem manipulasse pessoas ou informações. Certamente eu a usaria para fazer mais uma coisa comum aos atuais aspirantes a jornalistas: Aparecer. Chamem de desvio de caráter, se quiser, mas eu sei que não sou a única que gosto de ser elogiada, reconhecida e considerada. Esse pode ser um primeiro passo para marcar os dias atuais. Se eu for notada, talvez alguém me dê ouvidos. É isso. Eu queria ser tão querida e tão ouvida quanto uma novela.
Diândria Daia, abril de 2008

13 de julho de 2008

Alento

Passo os dias sem pensar demais
Vivo a rotina que se impõe a cada manhã
Dia que nasce e mais tarde se desfaz

Mas sem querer lembro-me de alguém
Memória traiçoeira que vem sem avisar
Traz lembrança que me tira o ar

E só lembrar já não me satisfaz
O desejo que me invade é encontrar
Preciso ver, tocar, estar presente

Saciar a angústia que essa falta me faz no momento
Porque a distância é tormento
E só um certo semblante é meu alento


Diândria Daia, julho de 2008

9 de julho de 2008

Menina de olhos verdes



Inspirada no poema “Esperança” de Mário Quintana*


Lá bem do alto do segundo andar de sua casa, ela grita para sua amiga que suba para brincar. Aquela porta existe para existir, e não para abrir. Mas isso não impede a menina, que voa com sua boneca até a sacada, e encontra sua imaginária companheira de aventuras. Como num estalo, tudo fica estático. A casinha de bonecas é abandonada e a menina se levanta para chamar sua vizinha.

Não que se sentisse só. Nem mesmo porque precisasse de companhia ou de mais personagens. Talvez pela necessidade que têm as crianças de espalhar da sua ternura e alegria ao redor. Sim, elas não se contentam em ser alegres sozinhas... já notou como as crianças precisam se esparramar pela casa, invadir os quartos, chamar a atenção de todos a sua volta? Precisam gritar e correr pela rua, de preferência aos bandos, para a balbúrdia ser maior. Precisam se mancomunar com outros coleguinhas naquele fôlego infinito de rir e fazer rir, de brincar e de aprontar.

Estou ainda mais certa: não precisaria existir mais ninguém naquele cenário. Mas ela levantou-se numa decisão impetuosa e puxou para si, com aquele ar de cumplicidade, uma participante para sua brincadeira. A vizinha, tão pequena quanto a anfitriã da bela casa já citada, não diz muitas palavras. Tímida, mas com um largo sorriso no rosto, sabe o que fazer. Bonecas em riste, põe-se a vesti-las, a compor sua outra casa e assim, em poucos minutos, está continuada a brincadeira.

A boneca anterior não prestava mais, porque tinha-se rasgado – que empecilho insignificante. Surge logo outra boneca, mais bela que a anterior. Vestem-se de ricas roupas, andam de carro ou de cavalo, sobem e descem da casa. Brincam na cama, preparam uma nova cozinha – tudo pequenininho, mas bem arrumadinho. São brinquedos de papel, recortados – às vezes rasgados mesmo – de revistas, jornais, propagandas ou do que mais cair nas mãos daquelas traquinas, desde que tenham cores, imagens e princesas e casas, e roupas e brinquedos.

E brincam de ser gente grande. Contudo, nenhuma das duas se importa com as contas a pagar, com as brigas dos adultos, nem com as más notícias da TV. Ali, naquele canto do quintal, frente ao portão enferrujado entreaberto, sentadas num chão sujo, encostadas num sofá velho e rasgado, elas ignoram a realidade. Tão distantes estão da violência diária, do desemprego, da fome no Sertão, das doenças na África, da corrupção no Governo ou da ausência de seus pais. Criaram um universo paralelo, um mundinho tão frágil quanto o material de seus brinquedos improvisados.

Ali, no cantinho do quintal, as amigas vizinhas não se importam se no último natal não ganharam bonecas, ou se no próximo aniversário trocarão algumas roupas por novas, ou se no dia da criança alguém vai lembrar que é o seu dia. Talvez nem elas mesmas se lembrem, se ninguém falar, do alto da inocência das crianças. Não... ali nada disso faz diferença, porque é um espaço incomum. É aqui, mas fora daqui. Perto dos olhos, mas longe de nossas vistas. É um lugar imaginário, criado por aquelas meninas.

Pobres meninas. Minha esperança é que de tanto brincar, aprendam a criar esse mundo também fora delas mesmas. Construir um “aqui fora” melhor, ou pelo menos viver bem – incluindo tudo o que se diz viver – apesar das voltas dessa vida dura. Mas para quê lamentar a vida agora? Outra vez criança, um sorriso nasce em meu rosto ao olhar para essas meninas. E espero, simplesmente, espero.

Diândria Daia, Outubro, 2007

7 de julho de 2008

Hora de saltar


Na janela do coletivo


às vezes o olhar se perde


e o pensamento voa


As luzes vão passando depressa



E dá vontade de sair de mim e passear entre os carros



e as casas e os prédios e os postes no horizonte



E ver o invisível, conhecer o desconhecido



Desvendar o mistério da noite e saber de coisas



que ninguém mais sabe e nem saberá



Dá vontade de ser grande, dá vontade de voar



Mas meu pé ainda está no chão



E o freio brusco mostra que chegou



Dou sinal, caminho até a porta



Hora de saltar
Diândria Daia, julho de 2008

6 de julho de 2008

O arquiteto


Essas operadoras de celular só nos causam problemas. Não é à toa que são campeãs de reclamações e processos na justiça. Se sofro de amor hoje, a culpa é de uma delas. Foi há uns meses atrás. No caminho para casa, ao descer do ônibus, recebo uma mensagem da operadora: bônus para falar de graça. Nada de grandioso, apenas alguns minutos de ligação, mas fiquei animada, e já fui caminhando sorridente para casa, pensando que coisas pequenas podem alegrar o dia.


Entrei na rua do meu condomínio e vi uma faixa simples, sem adereços, sem nada, apenas dizendo "arquiteto, faço projetos" e o telefone de contato – evidentemente um celular. Lembrei que mamãe gostava dessas coisas de projetos de casa. Ela mesma fez o projeto da nossa, coisa amadora, claro, mas tinha plantas e até maquete de isopor, imagine!


Pensei comigo o quanto um projeto desses seria caríssimo. E decidi ligar só pra saber. Caro leitor, se não fosse o referido presente da operadora, juro, não tinha ligado. Mas eu ia ligar de graça e só pra fazer graça. Ia saber o valor, agradecer, desligar o telefone e continuar minha vidinha pacata. Liguei.


- Boa tarde, gostaria de saber o preço do projeto?
- Sim, mas como chegou ao meu número?
- Em uma faixa, na Vicente Pires.


A conversa se desenrolou rápido, mas logo deu para perceber que o arquiteto era muito educado e simpático.


- Projeto para residências custa sete reais.
- Sete reais? – Espantei-me em alto e bom tom. – Mas só sete reais para o projeto de uma casa? – E o rapaz confirmou que era isso mesmo, mas emendou, meio sem jeito:
- Bom, sete reais é o valor dos desenhos. O projeto completo mesmo custa 14 reais.
- Mas eu só queria o desenho, mesmo, e sete reais eu posso pagar. Como faz?
- Estou perto, ainda hoje posso ir até sua rua. Qual é o endereço?


Detalhes da visita acertados, cheguei em casa, borbulhando de alegria e contei para minha mãe que um arquiteto passaria lá para fazer um desenho pra nossa residência, por apenas sete reais.


É claro que minha mãe não acreditou: "sete reais não paga nem a gasolina", disse ela. Se eu tivesse ponderado, concordaria, mas eu acabara de falar ao telefone com o arquiteto e como ele já estava a caminho, e eu muito feliz com a idéia de ter um desenho técnico da minha casa, nem me importei com a possível confusão.


Certa vez ouvi uma frase que dizia que se algo tem chance de dar errado, certamente vai dar. Pouco tempo depois, um rapaz jovem, lindíssimo e muito educado chegou à minha casa. Sentou-se, oferecemos algo para beber e iniciou o assunto do desenho. Entre sorrisos e ótimas sugestões para os espaços internos da minha casa, o jovem arquiteto comentou que o desenho seria apenas sete reais por metro quadrado. Minha cara foi completamente ao chão. Acho que eu nem conseguia mais olhar para o arquiteto, tamanha vergonha.


Mamãe na sala, mais empolgada que eu com a idéia, parecia não se abater com a cena que se seguia, e ficou puxando papo com o arquiteto, ao invés de mandá-lo logo embora. O simples desenho daria em média uns setecentos reais ou mais. Eu certamente não tinha aquele dinheiro e se tivesse não estava disposta a gastar com aquele propósito.


Mas também, que tola! Qualquer simples mortal raciocinaria que o valor que o arquiteto cobra é por metro quadrado. Todo mundo sabia, desde o começo que não era apenas sete reais. Até meu eventual leitor. Até o infeliz bônus da operadora de celular foi mais do que isso. O rapaz finalmente foi embora e eu estava certa que nunca mais o veria e que logo me esqueceria de tamanha vergonha que passei, fazendo o rapaz perder seu tempo e sua gasolina.


Domingo, como todos os outros, fui à igreja, já superado o caso de dois dias atrás. Qual não foi minha surpresa ao ver ali o arquiteto, ao vivo, a cores e com toda simpatia e beleza que cercavam aquela figura! Era impossível não ir cumprimentá-lo. Descobri que ele freqüentava as reuniões já há algum tempo e pensei “como não o vi antes?”.


Na semana seguinte o tal arquiteto me telefona. Achou feliz a coincidência do domingo e me convidou para sair para tratar do projeto. O coração bateu forte. É claro que aceito! Eu disse logo. Como não sairia com aquele rapaz encantador, que o destino tratou de colocar no meu caminho uma segunda vez?


Tem mulher que é meio boba assim mesmo. Basta um olhar - às vezes sem nenhuma intenção - que já cai de amores. Pensei mil vezes, por que ele havia decido um encontro apenas comigo em uma lanchonete no shopping, ao invés de tratar com minha mamãe em casa ou noutro lugar menos sugestivo? Bobagem da minha cabeça, eu respondia. Até que me "caiu a ficha": como é que eu ia falar de um projeto que eu não ia fazer? A vergonha haveria de ser ainda maior que da primeira vez.


Pensei bastante e concluí que eu não tinha deixado claro que não levaria a tal idéia adiante. "E se o rapaz quer apenas o pão de cada dia? Fico eu aqui numa ilusão ridícula e ainda pago um belo mico." Estava decidido: eu não trataria de nada com o rapaz. Liguei novamente, desmarquei o encontro e expliquei que não faria o projeto, da forma mais cordial que encontrei.


Estava aliviada, e o caso resolvido. Bom, isso se eu não encontrasse o tal rapaz toda semana. Parece que depois do ocorrido, na igreja a única pessoa que esbarrava comigo era o tal arquiteto. Sempre lindo, e sempre educadíssimo. Sabe aquelas pessoas que são tão educadas que você fica pensando que tem que ter algo por trás de tanta simpatia? Ele era assim, ouvia o mais ridículo comentário com muita atenção e sorria sempre. Olhava nos olhos, cumprimentava a cada oportunidade. Apaixonei-me.


Era um amor platônico, porque em pouco tempo não tinha mais projetos e nem coincidências a serem tratadas. Não tinha assunto e nem eu sabia como me portar. A gente fica bobo quando cai nessas de amores. Passado algum tempo o rapaz desaparece. Com apuro jornalístico e discrição ímpar, descubro que foi morar no interior do Paraná e que não pretende voltar para Brasília.


E agora fico aqui morrendo de amor mais platônico ainda. Culpa daquela meleca de operadora. Se não tivesse me dado o bônus infeliz logo naquele dia, logo na frente daquela faixa!


Por Diândria Daia, outubro de 2007